27 março, 2011

Sorriso Convidativo

Naquele tédio dominical meus amigos estavam com suas namoradas ou estavam descansando diante das drogas midiáticas de domingo, por isso não os chamei para que me acompanhassem em mais uma aventura, como era de costume esse seria um passeio noturno solitário para matar o tédio. Eu me sentia um lixo e não revelaria isso a ninguém, certas coisas são tão minhas que minha boca não pode explicar. Mataria o tédio ou ele me mataria por dentro, essa era minha sentença, por conta disso me arrumei com as melhores roupas e perfumes para um passeio casual; peguei minha carteira com umas pratas, chaves, caneta e papel e fui andando pelas ruas naquela noite. Após caminhar a pé encontrei um inferninho de pouca luz, decoração retrô, mesas com algumas pessoas variadas e mulheres que pareciam esperar um convite para conversa e eu era um dos poucos homens no local, para minha felicidade, mas eu não queria conversar, talvez não ainda. Fui recebido por uma linda e simpática balconista que apresentou o bar que tinha um clima interessante, disse-me que o microfone era livre para artistas; e eu nem pensava mais em produzir artes. Como eu já me encontrava condenado a ser demitido de uma latrina profissional fui abraçar o Diabo travestido de bebida alcoólica, os meses anteriores foram sofridos no trabalho e por um raro momento eu nem mesmo sabia o que queria para mim. Portanto bebi solitário do lado de fora do bar, tentando avistar estrelas e mantendo-me isolado, queria até andar mais e deitar numa grama para observar as belezas noturnas, mas lá fiquei. Avistei várias mulheres com diferentes belezas e umas nem tão agraciadas pela natureza. Não quis me dirigir a nenhuma delas, notei olhares e leves sorrisos, mas eu nem estava com clima de pronunciar qualquer coisa, queria beber, apenas beber e talvez pensar. Pensei seriamente em me abrir mais para conhecer novas pessoas, mas cadê o estímulo que vem de dentro? Talvez a noite ainda reservasse algo especial para mim.

Uns músicos amadores talentosos se apresentaram e assisti suas apresentações, bebi calado a curtos goles e veio a pausa dos artistas, resolvi entrar no bar e ocupei uma mesa vazia. Surgiu uma moça do nada quando virei o rosto para o lado, ela estava vestida com chinelos pretos, saia cigana vermelha, blusa decotada preta solta na pele, e tinha pulseiras, brincos e bolsa em estilo hippie; era de baixa estatura com pele clara, cabelos pretos ondulados até os ombros, olhos castanho escuros e uma boca com sorriso convidativo; passou perto de minha mesa, deu um sorriso que mesclava inocência e luxúria e seguiu até o microfone. A pequenina foi ao palco e cantou músicas nacionais e estrangeiras famosas sobre amores decadentes, mulheres cativando homens e outras coisas românticas sugestivas em MPB, blues, jazz e rock progressivo. Cantou com uma certa técnica e muita emoção em sua doce voz que variava do soprano ao contralto e nas névoas de cigarros e charutos daquele bar eu fui embalado pelo seu canto sedutor. Sorria discretamente para minha direção enquanto cantava e pensei que não era comigo, mas eu era o único homem na posição de seu sorriso, então sorri. Fui recompensado com um sorriso completo com dentes e olhos brilhando; ela mal sabia que eu tinha uma grande atração por cantoras, era como se ela soubesse como me cativar. Pensei "mocinha, não faz assim que você me leva no bico", virei o rosto para disfarçar meu interesse por ela e acabei minha primeira garrafa de cerveja barata.

Ela andou devagar desviando das mesas e cadeiras, pediu uma cadeira, disse-lhe "leve todas as cadeiras que quiser", então sorriu para mim, desistiu das cadeiras e sentou-se perto de mim dizendo estar solitária e interessada em conhecer novas pessoas. Não sou vítima do amor romântico, mas por aqueles minutos eu só queria ilusões, pois a realidade era drástica demais para que eu me concentrasse nela. Sentou-se colada ao meu corpo e pedi a balconista bonitona uma garrafa de vinho tinto bem doce acabando por sacrificar todas as cervejas baratas que compraria. Li o rótulo daquela garrafa fingindo ser algo inédito. Pedi mais um copo para a hippie, e ela bebeu comigo, a mesma era baixinha, talvez tivesse pouco mais que um metro e meio e pés por volta do tamanho trinta e quatro. Conversamos assuntos inteligentes e divertidos regados a álcool, depois bebemos uma garrafa de vodka paga por ela que me rasgava a garganta mas valia a pena pela companhia. A hippie me perguntou algo que não lembro, quando virei o rosto para respondê-la fui interrompido por um beijo na boca; nem tive tempo de pensar, os beijos dela foram súbito, fui abraçado de lado pelas costelas, paramos de nos beijar e ela permaneceu fortemente abraçada a mim. Quase tive um torcicolo para beijá-la pela nossa diferença de altura, mas ignorei a dor e continuei abraçado fazendo-lhe carinho na nuca e cabelos. Conversamos ainda mais e não nos apresentamos por nossos nomes parecerem obsoletos. Pegamos nossas garrafas de vodka e vinho e caminhamos abraçados bebendo no gargalo como se nos conhecêssemos há tempos. Entre um gole e outro, mais beijos e abraços apertados rolavam.

Deitamos num gramado mais afastado na madrugada e observamos estrelas, falando coisas intelectuais e bobagens, já estávamos arrastando a voz pela embriaguez. Aqueles momentos foram tão profundos e gostosos parecia até uma piada do suposto destino, pois eu era imã de mulheres problemáticas. Então ela me deu um bilhete fechado e me fez prometer que eu só abriria quando chegasse em casa, aceitei a carta com curiosidade, mas fui fiel ao compromisso pedido por ela. Depois de várias horas juntos nos despedimos calorosamente com abraços fortes e beijos selvagens com mordidas, perguntei se a encontraria novamente, lembro de sua voz arrastada a dizendo: "Não se preocupe, eu vou te buscar para comemorar meu aniversário amanhã". Dei um abraço e beijo de presente e o resto de vinho da garrafa, ela bebeu tudo num só gole. Várias horas depois eu acordei e li o bilhete que estava todo amassado dentro de minha carteira, continha um endereço de um cemitério na cidade vizinha com o horário de 16h e com um beijo em batom rosa claro como assinatura. Almocei e me arrumei ainda com um pouco de ressaca; era uma tarde nublada e cheguei ao cemitério no horário marcado, fiquei esperando por muitos minutos até que tive uma curiosidade por observar a beleza dos túmulos e mausoléus. Notei duas garrafas por trás de um arranjo de flores, em um túmulo todo colorido, provavelmente era de alguém que morreu jovem, aproximei-me e removi um vaso com flores mortas da frente da lápide e percebi que eram as garrafas que a hippie e eu bebemos na madrugada, logo consegui ver a lápide agora descoberta e encontrei a foto da moça com aquele sorriso convidativo e os dizeres "Camila Arlequim Vinhedo. Nascimento: 20 de março de 1940 - Falecimento: 21 de março de 1964. Uma vida de emoções fortes que foi prematuramente interrompida". Fiquei triste pela morte dela e pensei se haveria um próximo encontro. Dessa vez eu tinha me engalfinhado com um fantasma hippie, já me relacionei com várias mulheres loucas, mas ter romance com uma mulher que já morreu é novidade para mim... realmente as leis de Murphy me perseguem muito.



- Mensageiro Obscuro.
Março/2011.


Foto: Isis Valverde. Postei essa foto por achar o rosto e sorriso dessa atriz lindos.

Um comentário:

Carlos Orfeu disse...

Bela prosa,gosto profundamente de textos como estes, conficionais
de profunda candura,que olvida véus tristes.