À meia-noite de um luar de holofote
Chegou à praia o cadáver de Maria Cândida.
Embalada, aos tropeços, pelas espumas sujas,
Navegando em garrafas pet e camisinhas usadas,
Veio boiando serena, de barriga para cima,
Aportar sua última nau na Praia de Icaraí.
Sua pele branca refletia a luz da lua,
E seus cabelos aloiravam-se ainda mais,
Alaranjados pelos postes plantados à beira-mar.
Suas palmas abertas, seus lábios entressussurros.
- parecia até rezar! Não fossem as gigogas como braceletes,
e a espuma a brotar de sua boca roxa.
Florescente, brilhava a donzela sobre a areia,
Captando as luzes, refletindo, multiplicando,
Destacando-se como águas-vivas em meio à multidão.
Assim vi Maria Cândida chegar à praia, pela última vez.
Boiando como Ophelia, linda como deusa.
Morta, como cada fibra seca de meu coração-passa.
Nem de longe lembrava o anjo em construção
Que vi florescer em meio aos caos suburbano.
Não havia naquele corpo inchado e malcheiroso
Sequer um relance daquele sorriso tímido e inocente,
que se interrompia para sussurrar para si palavras de conforto,
na alcova infantil e imprópria para o amor.
Parecia sorrir levemente, chorar sem lágrimas,
E se não fosse perversão demais pensar assim,
Diria que seus seios virginais se intumesciam,
Conhecendo o ineditismo de arrepios de prazer,
Ansiando pelo toque de minha língua grossa
Em suas auréolas rosadas de gosto salgado.
Em questão de minutos, o cadáver de Maria Cândida,
Que resistira às marés e às mordidas de peixes,
Foi engolido pela multidão de curiosos.
Repórteres, corredores noturnos, babás assanhadas,
Que há pouco se deixavam bolinar no calçadão,
Cercaram a minha Ophelia e me privaram de minha ultima Visio.
Sentado à beira do caminho, como o Rei,
Pensei em Maria Cândida viva, seu sorriso frio,
Em suas maneiras de menina mimada e audaz.
Lembrei-me do desprezo em seus olhos azuis quando,
Sob a luz da mesma lua cheia, decidi declarar o meu amor...
- Não consigo esquecer aquela risada...
Maria Cândida flanou como se a terra lhe fizesse um favor
Em sustentar seu peso sobre si, seus pés de fada.
Não juntou em torno de si amigos leais, nem deu amor,
Olhava de cima a todos os outros mortais que a rodeavam,
Exigindo devoção de seu séqüito de tolos,
Bebendo puxa-saquismo como quem bebe beaujolais...
Assim, vendo todo aquele circo de mídia armado na praia,
Sucesso de público e fracasso de crítica, perfumaria,
Assunto vespertino para ajudar a vender juicer,
Revi Maria Cândida flutuando entre as espumas,
Chegar à praia refletindo a luz da lua,
E achei que ela ficava bem mais bonita assim...
... morta.
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Um comentário:
Olá! O poema é realmente empolgante.
Maria Cândida parece-me uma daquelas mulheres-estátua baudelairianas com sua pele branca e fria de gesso, refletindo a luz da lua.
O sadismo do eu-lírico é surpreendente.
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